Não poderia deixar de contar para vocês que saiu este mês na revista Viagem & Turismo uma ótima reportagem sobre a cena gastronômica de Montreal. O texto é da jornalista Alexandra Forbes, que vive aqui e é especializada em gastronomia....
"Toda cidade tem seu estilo próprio, inclusive no quesito comer fora. Em São Paulo a mulherada se arruma e bota salto alto pra jantar com o namorado, e ambiente e badalação podem contar mais do que a comida em si. Em Paris fazem sucesso os bistrôs de mesas espremidas, garçons malcriados e menu jurássico. No Rio o pessoal prefere passar o tempo num botequim, bebericando chope e comendo empadinha a se enfiar num lugar fechado com ar-condicionado. E em Montréal, como no Rio, ninguém quer saber de restaurante chique e formal. A nova moda na cidade mais viva e sexy do Canadá são os restôs escondidinhos e falsamente desarrumados.
Rei absoluto da preferência entre foodies e badaletes em geral, o Joe Beef, inaugurado há dois anos num bairro fora do circuito turístico, é o tipo do lugar pseudo-despretencioso. O décor é um sarro: banquetas de vinil, cabeça de búfalo no banheiro, piso de tábuas gastas, panos de prato fazendo as vezes de guardanapos, tudo com um jeito meio improvisado. A placa na entrada é bem pequena, pra reforçar a idéia de lugar insider. Garçonetes não vestem uniforme. O dono e chef David McMillan debruça os brações tatuados no balcão do bar enquanto bate papo com os clientes (todo mundo parece se conhecer). Os pratos são escritos numa lousa ao invés de impressos num cardápio.
E no entanto, o Joe Beef não tem nada de simplório. A comida, quase sempre deliciosa, mereceu elogios rasgados da mídia especializada e de jornais como o The New York Times. Nota-se o frescor dos ingredientes, até em drinques como o caesar, tipicamente canadense, que mescla suco clamato (tomate com um saborzinho de mariscos) e vódca, coroado com raiz forte ralada na hora e um camarão. As ostras, especialidade da casa (abaixo), são escolhidas e servidas com todo o cuidado do mundo. E os preços refletem o perfeccionismo culinário: uma entrada de camarões crocantes com flor de abóbora custa uns 40 reais, o carré de vitela com legumes para dois, uns 100 reais por cabeça.
Demorei um tempão pra finalmente ir conferir em pessoa e, tamanha expectativa, acabei me decepcionando um pouco. Meus tomates com atum e ovo pochê poderiam vir mais salgadinhos e tenros. O mero, salteado à perfeição, casou bem com o picadinho de batatas com creme, mas parecia pedir um elemento mais fresco e crocante para cortar a gordura. Mas se a comida às vezes desliza de excelente para apenas muito boa, o lugar, sempre cheio de gente descolada, é a mais pura tradução da cidade: informal, animado e um tantinho excêntrico.
McMillan fez escola. Chuck Hughes, um jovem chef que trabalhou sob a sua batuta, abriu restaurante próprio seguindo estilo parecido. Assim como o Joe Beef, o Garde Manger tem endereço escondidinho, nada de placa na porta, menu rabiscado numa lousa, porções generosas, clima de festa. A especialidade são os “pratos” de frutos do mar servidos em caixotes de madeira, sobre gelo picado. As patas de siri king chegam a medir meio metro! Ah, e o outro forte da casa são as garçonetes de parar o trânsito. Tamanho sucesso faz com que o lugar fique intransitável toda noite depois das dez. Chega a parecer uma mini-boate! No Garde Manger co-existem cozinha impecável e muita badalação, coisa que é raridade absoluta. Resultado? Hughes acabou sendo chamado para ser garoto-propaganda da maionese Hellman’s e apresentar programa de culinária na tevê e virou celebridade.
poutine com lagosta do Garde Manger
Seu mentor McMillan abriu em 2008 um segundo restaurante ao lado do Joe Beef, chamado Le Liverpool – parecidíssimo com a matriz. Chifres de veado nas paredes, panos de prato ao invés de guardanapo, copos grosseiros. Como sempre, porções enormes e carnívoras, como a costela de boi para dois (CAD$ 40). Ele tem ainda um terceiro negócio, a super descolada McKiernan Luncheonette, que está mais para bar de vinhos do que lanchonete. O Garde Manger também deu filhote: os sócios do chef Hughes saíram para abrir um concorrente, a poucas quadras de distância, que chamaram de L`Orignal (O Alce). Tiro e queda: desde o primeiro dia de funcionamento, ambos vivem cheios de gente bonita. E seguem a mesmíssima fórmula dos restaurantes originais: descontração, badalo, um quê de mistério graças à falta de placa ou propaganda, e pratos do dia bolados conforme o que há de melhor no mercado, sempre rústicos e fartos.
Não há dúvida que Hughes e McMillan dominam a cena foodie de Montréal. Mas o pai de todos os chefs da gastronomia ultra descontraída, também conhecida como bistronomia, ainda é Martin Picard. Um gigante com barba por fazer, jeito de ogro e fala solta, o chef ficou famoso depois que estrelou o documentário Durs à Cuire (algo como Ossos Duros de Roer). Seu Au Pied de Cochon é cheio de bossa. Serve comida rústica e carnívora ao extremo – de orelhas de porco fritas a linguiça de veado.
O celebrity chef americano Anthony Bourdain diz: “É uma ode ao excesso, não hesito pegar um voo de Nova York só para comer lá”. A primeira edição do livro do restaurante, lançado em 2006, se esgotou em 3 semanas e virou cult. Nele, Picard aparece ensanguentado destrinchando uma carcaça de porco, e dá dicas para caçadores (deixe o veado descansar com couro por sete dias antes de tirar o filé).
No Au Pied de Cochon (Ao Pé de Porco), sempre abarrotado de gente e ruidoso, deve-se provar a famosa poutine, que está para os nativos como o pastel para os paulistas (até os MacDonald’s do Quebec servem poutine). Trata-se de fritas douradas, amontoadas num prato de sopa, recobertas de molho grosso de carne e queijo branco derretido. A versão de Picard, ainda mais heavy metal, vem coroada com uma fatia de foie gras fumegante. O restaurante serve ainda outros pratos típicos do Quebec antigo, que alimentaram camponeses por gerações, e hoje voltaram à moda com status de comida da moda. Exemplos? O pé de porco que dá nome à casa; pato “enlatado”, literalmente cozido numa lata e servido com repolho; creton (patê de porco), tourtière (torta de carne) e tarte au sucre (torta de xarope de maple). É uma cozinha rústica e encorpada e cai bem com uma cervejota gelada e uma mesa cheia de amigos, bem à moda local.
Mas nem só de pato e foie gras vivem os nativos. Fanáticos por um sujinho, fazem fila todo fim-de-semana em clássicos como o Schwartz’s, um boteco famoso pelo sanduíche de carne defumada em pão de centeio. O português João Gonçalves, na casa há mais de 30 anos, fatia mais de 20 peças de carne a cada refeição (na foto abaixo).
Um almoço típico – sanduíche, picles, salada de repolho e refrigerante – servido no balcão de fórmica ou em mesinhas apertadas sai em cinco minutos e custa baratíssimo. Outro restauranteco nota dez é o Chez Doval, casa portuguesa com certeza, onde se acha o melhor frango na grelha da cidade. Ambiente furreco, serviço corrido, mas charmosa justamente por essa simplicidade pitoresca.
Carne defumada, pato com repolho, pé de porco... Não dá para chamar a cozinha típica de Montréal de leve. Por isso faça como os locais e substitua uma ou outra refeição em restaurante por um pique-nique no parque. A cidade tem vários espaços verdes, todos lindos e acolhedores. O mais central e fotogênico é o que fica, literalmente, no monte real, ou Mont Royal: a montanha com uma cruz no cocoruto que dá nome à cidade. Esse monte é habitado – até um certo ponto. Ali ficam as mansões mais lindas, de pedra com jardinzinhos impecáveis, no bairro chamado Westmount. E lá no alto está o parque, com mil e uma trilhas para caminhada, uma lagoa freqüentada por castores (aqueles bichos dentuços de rabo rugoso típicos do Canadá) e um mirante.
O passeio é delicioso! Comece com uma parada num dos principais mercadões, o Jean Talon, maior porém mais distante, ou no Atwater Market, menor e mais caro. Ambos têm filiais da famosa padaria Première Moisson vendendo baguettes fresquinhas e croissant que se desmancham na boca, e excelentes lojas de queijos. Os queijos feitos no Québec, aliás, estão entre os melhores do mundo, afinados em adega segundo a tradição francesa até atingirem o perfeito grau de maturação. Best-sellers incluem o Pied-de-Vent das ilhas Madalenas, o queijo azul feito pelos monges da abadia St. Benoît du Lac e o ultra-cremoso Riopelle, um triple-crème à moda francesa. Complete o kit com uvas, frutas secas e um bom vinho.
Na província, só se compra vinhos nas lojas estatais SAQ – Societé des Alcools du Québec (pronuncia-se saque). A boa notícia é que os preços são ótimos: aproveite para experimentar um cabernet sauvignon ou sauvignon bland do vale Niagara, na província de Ontario, melhor região vinícola do Canadá. Na dúvida, procure por produtores conceituados como Peninsula Ridge, Thirty Bench ou Jackson Triggs.
Por fim, nenhuma visita a Montréal estará completa sem que se prove outra especialidade local: o bagel. Sim, os americanos também se gabam desse pãozinho em forma de rosca e massa branca, mas o autêntico bagel, juram os entendidos, é o de Montreal. Os melhores são os das concorrentes St. Viateur Bagel Shop e Fairmount Bagel Bakery, padarias ultra-tradicionais fundadas por imigrantes judeus. Ambas são muito fora de mão para o turista (ficam bem ao norte do centro turístico). Conforme o costume trazido do leste europeu, sempre há uma leva fresquinha de bagels saindo dos fornos a lenha, a qualquer hora do dia ou da noite – para a alegria da galera saindo da balada na alta madrugada! Um consolo: os famosos bagels, enrolados a mão, são vendidos não só nas matrizes, mas também na maioria dos melhores cafés e mercearias da cidade. Faça como quem entende e peça o seu com um belo naco da excelente manteiga local, ou bem escoltado por fatias de salmão defumado, alcaparras e cream cheese. É… Definitivamente, Montréal não ajuda as mocinhas de regime!"
Onde é melhor
Ficar
O novo Opus (8, Sherbrooke West Street, 657-5656, opushotel.com; diárias desde CAD$ 329; Cc: todos) é o hotel mais badalado, graças a Koko, seu restaurante-lounge asiático. No Auberge du Vieux-Port (97, Rue de la Commune, 876-0081, aubergeduvieuxport.com; diárias desde CAD$ 164; Cc: todos), os melhores quartos são os de quina, como o 306, com parede de pedra e vigas aparentes. O Hôtel Place d'Armes (701, Côte de la Place d'Armes, 842-1887, hotelplacedarmes.com; diárias desde CAD$ 195; Cc: todos) tem uma ala velha (mais apertada) e uma nova (bem melhor), além de ótimo spa. Das grandes redes, a melhor é a Sofitel (1155, Rue Sherbrooke Ouest, 285-9000, sofitel.com; diárias desde CAD$ 170; Cc: todos). Nos quartos, camas fofíssimas e flores frescas.
Comer
O Au Pied de Cochon (536, Avenue Duluth Est, 281-1114, restaurantaupieddecochon.ca, Cc: A, M, V) é o restaurantezinho mais cult de Montreal, em que vegetarianos não entram. No Chez Doval (115, Rue Rachel, 843-3390; Cc: M, V), peça o frango ou a lula na grelha com salada. O Garde Manger (408, Rue St. François-Xavier, 678-5044; Cc: A, M, V) começa a noite como um ótimo restaurante e termina em balada. O chef-proprietário, Chuck Hughes, é pupilo do dono do badaladíssimo Joe Beef (2491, Rue Notre-Dame, 935-6504, joebeef.ca; Cc: V), David McMillan. O Liverpool House (2501, Rue Notre-Dame, 313-6049, liverpoolhouse.ca; Cc: V), vizinho do Joe Beef, é sua versão 2008: maior e italianado. Outro bistrô que serve pratos dignos de um lenhador faminto, o L'Orignal (479, Rue St. Alexis, 303-0479, restaurantlorignal.com; Cc: M, V) tem rabada de bisão com purê de batata (CAD$ 25) e veado com cogumelos e cebolinhas glaceadas (CAD$ 34). Entra ano, sai ano, o Schwartz's (3895, Boulevard St. Laurent, 842-4813, schwartzsdeli.com) continua sendo a lanchonete mais disputada, servindo milhares de sanduíches de carne defumada a fãs devotos.
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